Ribanildo Bezerra

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O Farol e as Cinzas

Preferia o silêncio. Era amante do silêncio. Aquele instante era ele ali, vivo, traduzido em lembranças. “Todas as ilusões começam a se despir no instante em que tudo silencia” – sua frase mais famosa, quase um bordão, era lembrada entre fumaças de cafés e cigarros, além de muitos, muitos papéis organizados, de forma espartana.
Uma semana depois do seu falecimento, a pequena família e alguns amigos o eternizavam nas distintas leituras que cada um nutria sobre ele.
Não era um ambiente triste, mas despudoradamente saudoso, ali no seu cemitério de livros, como costumava chamar sua biblioteca, sua personalidade estava sendo dissecada… Os irmãos, dois, trariam a baila uma das principais questões sobre a sua personalidade: como caçula da família, até certa altura da vida era tido com uma das pessoas mais afáveis e doces.
Teria se transformado em um ser ácido, irônico, descrente da essência humana, quase um pessimista… não fosse a admirável discrição que tinha sobre a opinião alheia. Individualidade para ele era um conceito sagrado. Podia não acreditar em grande parte das pessoas, mas defendia e admirava o princípio maior da expressão alheia: a liberdade.
A viúva, ao lado dos três filhos, relendo alguns manuscritos entre notas e rubricas, ressaltava o hábito de em noites mais profícuas, quando varava as madrugadas até o amanhecer, o via com olhos de satisfação, louco para devorar um bife acebolado, cortado em tiras, e um refrigerante, sempre servido às 6h da manhã, antes de tirar as suas duas horas de sono, quando sentia-se revigorado para ministrar aulas sobre Comunicação Social na Universidade Federal, às 10h.
Quase nunca reclamava da vida, mas há muito não distribuía sorrisos gratuitamente. Não se considerava um ser mal-humorado, mas sim, sério. Quem o conhecia há mais de 30 anos entendia que aquilo era tudo blindagem.
Sua Geriatra que o diga. Amiga neste período, esqueceu inúmeras vezes em que uma consulta se transformava em um velho bate-papo entre amigos, com direito a furtivos, porém raros, goles de um malte escocês em fim de expediente e por isso era sempre o último a ser atendido, coisa que aceitava com imensa satisfação.
Falava sobre tantas coisas, principalmente sobre cultura gótica, seu assunto predileto. Para ele muito além dos estereótipos de tristeza e pessimismo o gótico trazia, particularmente na obra do pintor inglês Joseph Wright , as nuances do lado iluminado e sombrio do ser humano, para a obra “Experimento com um pássaro em uma bomba de ar, pintura que a sua amiga detestava.
Os filhos lembravam o lado humanista, pouco assumido para os demais. Muitas vezes reunia as duas garotas e o mais velho e saiam a esmo nas noites de sábado, em busca de famílias carentes para distribuição de feiras. Assistencialismo, assumia. Levava também a tiracolo um ou dois livros, e quando acreditava que possuía uma brecha, tentava a convencer quem estava com fome, a se alimentar com novas ideias. Para ele, a melhor religião eram as atitudes.
Os três filhos, em plena adolescência, lembram o dia que eles mesmos denominaram de “metamorfose”. Uma noite teria chegado em casa, noite de chuva, e procurava com um envelope amarelo nas mãos, a sua esposa. Ela chegaria logo em seguida, 40 minutos depois. Seria uma noite de sussurros, choros, porém de discrição.
Tudo tratado a quatro paredes. Lembram de ter ouvido através da porta do quarto, a única palavra audível para aquela situação: engano. Não se sabe se proferido por ela ou por ele. Nunca mais o veriam rir, nem tão pouco ser afável como antes. Seu olhar sempre perdido, só voltava a brilhar quando ouvia seu compositor predileto “Cole Porte”.
Raramente solfejava algo mas quando assim o fazia era previsível a música “Night and Day” uma das pérolas de Porter.
Segundo os mais próximos, as mágoas deveriam estar no seu Atestado de Óbito.
A viúva socióloga, ao telefone, recusava a homenagem que a Universidade insistia em prestar. Conhecia as prerrogativas do marido, seja para ensino, pesquisa ou dinheiro. Sempre afirmava que teria deixado a abnegação pelo ofício em alguma esquina da cidade. Era um prostituto de ideias conscientes.
Afirmava que alunos, em sua maioria, eram “judas juvenis”, mas continuava na academia pois os raros que se destacavam entre os cascalhos, eram verdadeiras joias.
A dúvida de todos, naquele fim de tarde, estava prestes a ser elucidada. Onde seriam jogadas as cinzas do velho professor? A abertura de um envelope, com aviso apenas para ser lido após a sua morte escrito à mão, encerraria o mistério. A geriatra pediu espaço para a leitura, no que foi atendida e respeitada: Minhas cinzas têm lugar certo, e devem repousar aos pés do pequeno farol, que ilumina a baía, cerca de 59km do nosso litoral até ele.
Meus fins de tarde sempre tiveram poesia e leveza, cada vez que o mirava. Preferia não ter um apego a um lugar ou espaço físico, mas até o último instante da minha vida, levarei a imagem daquele que, com luz própria, me enchia de esperança para cada novo dia. O farol já não será mais o meu pequeno, onde diluía em solilóquios meus poucos sonhos.
Agora eu serei do Pequeno Farol, e lá minhas ideias descansarão na fluidez do vento, seja em que direção for. Voltei a amar a vida pela luz daquele farol. Este desejo deverá ser cumprido.
Apenas duas pessoas naquela sala, entenderiam que o Farol era sim uma das mais distantes metáforas, sobre a sua própria vida, mas que ainda assim, aquele desejo simbólico seria respeitado.

Por Ribamildo Bezerra

 

 

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