Nós já fomos cegos
Publicado em 26 de outubro de 2015Neste Domingo nos encontramos diante uma das passagens evangélicas mais conhecidas, a cura do cego Bartimeu que ao encontrar Jesus recobra a visão (cf. Mc 10, 46-50). Todos os detalhes deste relato são muito interessantes, para entender o processo interior de fé que se realiza neste cego. O relato apresenta uma sequência de passos até chegar a uma fé viva, que culmina no compromisso do seguimento de Cristo.
O Evangelho de Marcos nos apresenta Jesus rodeado de seus seguidores a caminho de Jerusalém onde vai consumar sua missão na cruz. Deixam para trás a pequena aldeia de Jericó, verdadeiro Oásis, última parada no trajeto para a cidade de Davi, restam apenas alguns quilômetros. Na saída da “cidade das palmeiras” Jesus, os discípulos e grande multidão encontram o cego Bartimeu, que irá juntar-se ao grupo de Jesus de maneira muito especial.
“Estava sentado à beira do caminho, mendigando, o cego Bartimeu, filho de Timeu.” (Mc 10, 46) Além da extrema miséria em que vivia, o cego era considerado pelos teólogos judeus, maldito de Deus por ser visto como objeto da vingança divina pelo pecado de seus pais, ou pelo próprio pecado. Era um espectador, mas havia ouvido falar de Jesus, um profeta que fazia milagres. Todos estes detalhes teem a intencionalidade de fazer-nos ver que não era um crente nem um seguidor de Jesus, era um excluído que não contava nada em uma sociedade tão religiosa e convencional.
Este homem cego percebe a movimentação com a chegada de um personagem do qual havia ouvido falar. Aqui começa um processo que desperta um interesse e uma esperança que não renuncia à busca de um remédio que mude sua vida. No mais profundo de sua interioridade, se desperta sua religiosidade. Como israelita havia sido educado num clima religioso que, ainda que cético por sua situação estivesse aí. Tudo isso, lhe comove e lhe leva a gritar repetidamente: “Filho de Davi, Jesus, tem compaixão de mim!” (Mc 10,47)
Esta exclamação é importante, pois é um modo de reconhecer que aquele profeta, que passa a seu lado, não é um curandeiro qualquer, nem sequer um profeta a mais, por isso o chama de “Filho de Davi”. Estamos já ante um movimento interior que o leva até uma expressão de autêntica fé em Jesus, o enviado de Deus, pois todo bom judeu sabia que o Messias, seria da linhagem de Davi.
Enquanto a multidão manda que o cego se cale, Jesus manda-o chamar: “Chamaram o cego, dizendo-lhe: ‘Coragem! Ele te chama. Levanta-te’” (Mc 10,49). É importante destacar o papel das pessoas, o ânimo da comunidade. Todo este processo o faz tomar consciência de seu próprio valor, não se sente mais só, à margem da vida, se põe em movimento, “deixando o manto, deu um pulo e foi até Jesus” que o pergunta: “Que queres que te faça?” O cego expõe diante de Jesus seu desejo: “Mestre Que eu possa ver novamente!” Jesus o cura e acrescenta algo substancial: “Vai: a tua fé te salvou!” (Mc 10,50-52) É a resposta de Jesus. Chega a dizer com isso, não sou eu, nem meu Pai, és tu, é tua fé, porque confias em Alguém, que está em ti e pode curar-te. Jesus atribui à sua fé a cura.
Bartimeu recupera a visão porque tem fé; Fé entendida como confiança neste Jesus, que pode compreender os ignorantes e que estão à margem do caminho: Fé em quem se fez um de nós, caminhando por nossos caminhos para que nos pudéssemos levantar de nossas misérias e livrar-nos de nossas cegueiras; Fé que é capaz de curar a cegueira; A fé não é cega, mas o contrário: é luz que ilumina a vida da pessoa. Não, a fé cristã não é renúncia à racionalidade e à responsabilidade pessoal. O fanatismo que é cego, é a antítese da fé.
No processo da fé Deus toma sempre a iniciativa. Assim atuava Jesus em sua vida pública, pois chamava homens e mulheres à conversão. Os evangelistas nos dizem que Jesus pregava, explicava seu projeto, o que Ele chamava o Reino de Deus, era um chamado à conversão, mas não era um chamado às cegas e o seguimento tampouco era fruto de um entusiasmo emocional ou de uma fé cega.
Alguns o seguiam, outros não, tinham suas amarras, inconvenientes que freavam seus desejos iniciais e ficavam como espectadores, à margem do caminho. Jesus respeitava e respeita os processos íntimos do ser humano, à liberdade interior não se impõe. O seguimento de seus primeiros discípulos era fruto de uma identificação com o projeto do Reino, que ao fazê-lo seu, acabava em uma resposta incondicional.
Ao chegar a este ponto, o que pode parecer que é só o relato de uma cura, temos de vê-lo com a intencionalidade do evangelista, que através deste milagre nos oferece uma mensagem mais ampla que vem a ser uma autêntica catequese sobre a ação libertadora de Jesus. Por isso não se limita a apresentar-nos a Jesus como o homem que faz milagres, não é um curandeiro, que restaura a saúde perdida. Jesus vai mais além, busca a cura integral da pessoa que está na saúde física e é seu bem estar total que abarca também o psíquico, o espiritual, a própria integração social. É a libertação autêntica do ser humano que se sente plenamente realizado ao descobrir uma nova vida cheia de sentido.
Por isso ao final deste episódio deixa cair, como de passagem, que o cego “no mesmo instante que recuperou a vista seguiu Jesus no caminho.” (Mc 10,52) Quer dizer, ao descobrir Jesus, o segue incondicionalmente, deixou tudo à beira do caminho, tem uma visão nova das coisas, se incorpora ao projeto de Jesus que terminará na subida a Jerusalém e na cruz.
A cura do cego Bartimeu, mais que um fato, é um símbolo. Quantos Bartimeus vivem em nosso tempo diante do grande mistério do sofrimento e da dor! Há muita cegueira nas pessoas diante das injustiças e dos sofrimentos, como se o não sofrer fosse o auge da perfeição humana. Diante da ideia de caminhar com Cristo até Jerusalém “a cidade da dor e da morte” permanecemos muitas vezes imóveis no território do nosso ego, desanimados para nos pormos, sobretudo a caminho da solidariedade, da terra da dor alheia. Somos necessitados de que alguém nos diga: “Coragem! Ele te chama. Levanta-te.” (Mc 10,49) Somos necessitados de que Jesus nos abra os olhos e nos arranque de nosso imobilismo deprimente.
Do cego físico podemos passar ao cego espiritual que não vê, ou não quer ver, fatos, causas e razões. Cristo veio ao mundo para dar a luz aos cegos. Mais que aos cegos fisicamente aos cegos espirituais, incapazes de acompanhá-lo, de segui-lo. Tal como o cego do caminho precisamos acreditar para ver, para curar a nossa cegueira inata… Bartimeu representa cada ser humano que, sozinho, não pode caminhar e não tem condições de alcançar o sentido da vida, uma meta que o mova a viver. Em Bartimeu Jesus reconhece toda a humanidade na imobilidade, necessitada de luz e salvação.
Nós cristãos batizados já fomos cegos à beira do caminho. Cristo nos chamou e nos fez ver. Como o cego Bartimeu digamos: “Senhor, que eu veja!” Para que vendo creia, e crendo abrace e siga firmemente Aquele que é Caminho e Caminhante conosco.
Pedro Cardoso da Costa – Interlagos/SP
Bacharel em direito