Hoje se cumpriu
Publicado em 1 de fevereiro de 2016Neste Domingo, com o relato da pregação de Cristo na sinagoga de Nazaré,(cf. Lc 4,14-21) iniciamos a proclamação do Evangelho de São Lucas que será lido e meditado na Liturgia Dominical da Igreja Católica ao longo deste ano. O relato é uma construção muito particular de São Lucas; uma das cenas programáticas do terceiro evangelista que quer dizer quem é Jesus e o que Ele veio fazer no meio da humanidade.
Lucas recorda que Jesus frequentava a sinagoga aos sábados e participava da liturgia sinagogal. Convidado para comentar a Sagrada Escritura, Ele escolhe um texto muito conhecido da profecia de Isaías (Cf. 61,1-2), que sintetiza perfeitamente a missão do Messias (ungido): “O Espírito do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu, para anunciar a Boa Nova aos pobres, enviou-me para proclamar a libertação aos presos e, aos cegos, a recuperação da vista; para dar liberdade aos oprimidos e proclamar um ano da graça do Senhor… Então começou a dizer-lhes: ‘Hoje se cumpriu esta passagem da Escritura que acabastes de ouvir’”. (Lc 4,18-21)
“Lendo e refletindo sobre esta passagem, é possível ver o entusiasmo que encheu aquela pequena sinagoga: a proclamação da Palavra de Deus na santa assembleia é um acontecimento. Assim se lê na Verbum Domini: ‘A liturgia é o âmbito privilegiado, onde Deus nos fala no momento presente da nossa vida: fala hoje ao seu povo, que escuta e responde’ (VD, n. 52) é um âmbito privilegiado, embora não o único. É verdade que Deus nos fala de muitas maneiras: através dos acontecimentos da vida, do estudo pessoal da Escritura, dos momentos de oração silenciosa. A Liturgia, porém, é um âmbito privilegiado, porque é nela que escutamos a Palavra de Deus, como parte da celebração que culmina na oferta sacrificial de Cristo ao Eterno Pai… Sendo parte integrante da Liturgia, a homilia não é só uma instrução, mas também um ato de culto.” (Diretório Homilético, n. 4)
A homilia começa exatamente quando a comunidade encontra Jesus Cristo, precisamente quando compreendemos que Jesus é a Palavra de Deus no meio de nós, porque a Palavra não é uma coisa, mas uma pessoa: “A Palavra fez-se carne e habitou entre nós.” (Jo 1,14) Jesus não veio para ler a Bíblia, veio cumpri-la.
“O próprio Filho é a Palavra, é o Logos, a Palavra eterna fez-se pequena; tão pequena que cabe numa manjedoura. Fez-se criança, para que a Palavra possa ser compreendida por nós. Desde então a Palavra já não é apenas audível, não possui somente uma voz; agora a Palavra tem um rosto, que por isso mesmo podemos ver: Jesus de Nazaré”. (Bento XVI, Verbum Domini, n. 12)
Cada página do Evangelho não é fábula, lenda ou conto; não é palavra morta, mas palavra viva, que Deus diz a nós e deve realizar-se no hoje de nossa vida. O Evangelho não narra apenas à vida de Jesus, mas também a minha vida. O Evangelho nos contém, nos envolve. Por isso, a Liturgia da Palavra e a homilia não é uma simples lição moral, catequética, mas proclama o cumprimento do desígnio do Pai no hoje da vida desta assembleia concreta.
Deste modo, o cristianismo não é principalmente a religião do livro, como é o Judaísmo e o Islamismo, mas sim a religião da pessoa de Jesus Cristo, Livro sempre vivo que revela à humanidade as vicissitudes e os tortuosos caminhos da história.
Na Escritura cristã (Antigo e Novo Testamento), se faz presente e viva a pessoa de Jesus para todos os crentes. “Toda a Escritura é um só livro, e esse livro é Cristo”, nos ensina Hugo de São Vitor, filosofo, teólogo e autor místico da Idade Média. Por isso, os primeiros cristãos, tanto provenientes do judaísmo como do mundo pagão, não pregam a “Torá”, mas sim o Evangelho, pois este é a apresentação do programa e da identidade de Jesus. Ele é o Messias enviado por Deus e ungido pelo Espírito para falar em nome do Senhor, trazendo a sua misericórdia, a liberdade e o auxílio aos cativos, aos pobres, aos oprimidos. A condição hoje necessária a cada cristão é o acolhimento de Jesus e da sua Palavra.
Foi um momento desconcertante para os vizinhos de Nazaré, quando Jesus, o filho do carpinteiro, se atreve a dizer que as palavras que o profeta Isaías atribui ao Messias que haveria de vir aplicam-se a Ele, a si mesmo. Algo inaudito para eles, algo que nenhum profeta jamais havia ousado fazer. E, deixando outras coisas à parte, se nós lemos com atenção a passagem citada, veremos, também com assombro, que Jesus se atreve a modificar breve, mas substancialmente o texto de Isaías. Ele não lê a última frase deste texto: “o dia da vingança de nosso Deus”. Quer dizer, Jesus disse que o Senhor, lhe havia ungido para pregar o “ano da graça do Senhor”, mas não “o dia de sua vingança”. E este detalhe nos deve fazer compreender nosso Messias, não veio pregar a vingança, o julgamento, o castigo, mas a graça de Deus.
Eu creio que, neste ano do jubileu da Misericórdia, também nós, os cristãos, discípulos e discípulas de Jesus, devemos fazer o propósito de pregar com nossas palavras e com nossas obras a graça e a paz de Deus, sua misericórdia, antes que sua ira ou seu castigo. Durante este ano da misericórdia sejamos nós pregadores da paz e da misericórdia de Deus, como o Papa Francisco nos recorda e nos recomenda.
A atualização é o coração da homilia. Cada comunidade deve ter sua própria escuta da Palavra de Deus. É preciso que ela aprenda por sua própria conta a Palavra de Jesus, adaptando-a assim: “Hoje se cumpriu para nós essa Palavra que acabamos de ouvir”. Cada época deve ter também sua própria escuta da Palavra. Cada idade deve experimentar o mistério da contemporaneidade da Palavra há todos os tempos.
“Hoje se cumpriu”, um hoje que faz referência à atualidade, à nossa situação pessoal e comunitária. Este “hoje” de Jesus na sinagoga de Nazaré é o centro de toda a sua homilia. Toda palavra que é proferida diante da comunidade é Palavra que Deus diz hoje à comunidade. A finalidade da homilia será sempre traduzir a Palavra de Deus mostrando sua atualidade.
“Hoje se cumpriu”, “hoje nasceu o salvador”, “hoje estarás comigo no paraíso”… O cristão vive sempre no hoje de Deus sempre presente, e hoje ainda sua Palavra segue nos questionando. Evangelho que não for para hoje não funciona, não tem eficácia. O que permanentemente nos interpela é como anunciar hoje este Evangelho, esta Palavra sempre viva e atual, o Cristo Jesus?
Padre José Assis Pereira