Fé e caridade
Publicado em 15 de novembro de 2015Quando Jesus está para concluir sua atividade pública em Jerusalém, Marcos apresenta no seu evangelho uma última palavra crítica dele, em relação ao mau comportamento dos doutores da lei (cf. Mc 12,38-44) e uma palavra de elogio ou exemplo de generosidade de uma mulher, pobre e viúva.
“Cuidado com os escribas! Eles gostam de andar com roupas vistosas, de ser cumprimentados nas praças públicas, e de ocupar os primeiros lugares nas sinagogas e os melhores lugares nos banquetes. Eles devoram os bens das viúvas fingindo fazer longas orações.” (cf. Mc 12,38-40) Com esta ostentação do seu saber e de sua piedade, os escribas deslumbravam a gente simples, sendo as viúvas indefesas e piedosas as vitimas mais frequentes destes vigaristas.
Que comportamento hipócrita! Judeus escribas ou doutores da lei eram aqueles que ensinavam às pessoas a Lei de Deus e, como as mulheres não podiam ter direito legal para administrar os bens de seus falecidos maridos; constituíam os escribas como seus administradores, pois confiavam neles para em suas mãos deixar a administração dos seus bens patrimoniais.
Muitas vezes esses administradores cobravam uma parte dos bens como pagamento. Porém, de fato, ganhavam uma percentagem sobre os bens administrados e era notória a prática do desvio do dinheiro e dos abusos. Por isso os escribas eram ricos e as viúvas cada vez mais pobres.
Que coisa deplorável! Usar a religião em beneficio próprio e contra o próximo é corromper a religião. Se a religião deve ser sempre ato de amor a Deus e ao próximo, usar a religião com fins exclusivamente egoístas é falsificar a essência mesma da religião, corrompê-la.
Jesus condena os judeus escribas precisamente por isso: por usar a religião para obter privilégios e para encher seus bolsos com o dinheiro dos pobres ou destinados à caridade dos pobres.
Desgraçadamente, não tem sido exclusivamente os judeus escribas os que têm feito isso! Mas o mesmo tem feito muitos cristãos ao longo da história do cristianismo. Muitos nobres e ricos cristãos fizeram doações à Igreja com o exclusivo fim de assegurar seu status social. Nunca usemos nós a religião com fins particulares, exclusivos ou principalmente econômicos.
Nossa expressão religiosa deve ser sempre expressão do nosso amor a Deus e ao próximo. Uma expressão religiosa com fins egoístas não é um uso religioso da religião.
A esmola sempre foi considerada como uma virtude cristã. Porque a esmola cristã é um ato de amor
cristão, quer dizer, de amor ao próximo necessitado de ajuda. Neste sentido, a esmola é um ato de misericórdia, é compadecer-nos da miséria do próximo e tratar de remediá-la.
Neste nosso tempo, nem sempre é fácil saber quando e como devemos exercitar a virtude da esmola ou da caridade, porque nem sempre sabemos quando o próximo que nos pede esmola está de verdade necessitado, ou está fingindo necessidade. O certo é que devemos praticar a virtude da esmola, o difícil é saber o quando e o como devemos praticar esta virtude.
Nas ruas, nos sinais de trânsito, nas portas das nossas casas, das Igrejas e nos mais diversos locais há sempre pessoas que pedem esmola; como sabemos se de verdade são pessoas necessitadas ou não, nem sempre é fácil. É mais seguro dar dinheiro a organizações ou instituições serias, que sabemos que vão distribuir acertadamente o dinheiro que nós demos. Mas a dificuldade de acertar com ou como e quando em nenhum caso nos vai dispensar da obrigação cristã de dar a esmola.
Se a esmola é expressão do amor ao próximo, a prática da esmola é tão necessária como necessária é a prática do mandamento do amor ao próximo. No entanto, não é necessário que estejamos com dinheiro sobrando, para poder dar esmola; a viúva do Evangelho era uma pessoa pobre e, sem duvida, deu a esmola ao templo, porque estava convencida de que assim contribuía a dar um melhor culto ao Deus que ela adorava.
Jesus até se comove ao ver passar uma pobre viúva, chama seus discípulos e comenta elogiosamente a conduta da pobre viúva, pois ela deu tudo o que tinha para viver, enquanto os outros deram do que lhes estava sobrando, do supérfluo. Os que dão aquilo que lhes sobra dão só dinheiro, inclusive fazem às vezes negócios com a esmola. Mas, se um dá o que lhe faz falta, do seu meio de vida, isto é dar vida.
O verdadeiro sacrifício agradável a Deus não consiste em dar o que temos, mas sim em dar nossas próprias vidas. Podemos perguntar-nos se neste tempo de crise estamos sendo suficientemente generosos em aliviar o sofrimento de tantas pessoas que não tem meios de vida para subsistir decentemente.
O profeta Elias se pôs a caminho de Sarepta e, ao chegar à porta da cidade, encontrou ali uma viúva que recolhia lenha. Pelo que lemos no primeiro livro do Reis, (cf. 1Rs17,10-16) trata-se de outra viúva que deu esmola não do que lhe sobrava, mas sim do que ela mesma e seu filho necessitavam para sobreviver. Neste caso, a viúva de Sarepta o fez confiando na palavra do profeta Elias, a quem ela viu como um autêntico profeta do Senhor.
Dar não do que está sobrando, mas sim do que necessitavam para viver, isto é o que fizeram as duas famosas viúvas que nos falam as leituras da Palavra de Deus de hoje. São duas mulheres muito pobres, e precisamente com esta sua condição demonstram uma grande fé em Deus e o amor ao próximo. Pois só o amor pode explicar e justificar o que ambas fizeram, dando tudo o que possuíam. Demonstram a sua fé cumprindo um gesto de caridade. Confirmam assim a unidade inseparável entre fé e caridade, assim como entre o amor de Deus e o amor ao próximo.
Evidentemente, trata-se de dois casos extremos de generosidade. “Deus ama o que dá com alegria”, (2Cor 9,7) “a felicidade está mais em dar do em receber” (At 20,35). O desapego é uma forma de liberdade e confiança em Deus. São exemplos mais admiráveis que imitáveis. São-nos propostos precisamente para que admiremos sua grande generosidade e para que seu exemplo nos anime a vencer nossa mesquinhez habitual e nossa excessiva preocupação com a segurança econômica.
Quando nós nos deixarmos tocar e possuir pelo amor de Deus, também nos sentiremos impelidos a responder da mesma forma e retribuir sem restrições e sem medida.
Padre José Assis Pereira Soares é pároco da Paróquia Nossa Senhora de Fátima, no bairro da Palmeira.