Atiradores esportivos cadastrados no Exército compram armas legalmente para abastecer criminosos

Publicado em 14 de setembro de 2022

Investigações da polícia revelam uma conexão entre armas compradas legalmente e seu uso por criminosos em assaltos. Por exemplo, armas utilizadas por criminosos em um assalto a um carro-forte em Guaíba, na região Metropolitana de Porto Alegre, em dezembro de 2021, foram obtidas legalmente, de acordo com investigações da Polícia Civil.
O comprador, recrutado pelos criminosos para fazer a compra tinha registro de Caçador, Atirador e Colecionador (CAC) junto ao Exército, afirma o delegado João Paulo de Abreu.
Os caçadores podem ter até 15 armas com alto poder de fogo. Já colecionadores, podem comprar armas à vontade, uma vez que não enfrentam limites para aquisição de armamento.
O número de armas e munição nas mãos dos CACs explodiu no Brasil nos últimos quatro anos, consequência de uma série de decretos de Jair Bolsonaro que ampliou os direitos da categoria. O número de integrantes de CACs avançou de 117 mil em 2018 para mais de 673 mil até junho de 2022, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
Por decreto, Bolsonaro aumentou o limite de armas e munição a integrantes do grupo. Atualmente, atiradores podem ter até 60 armas e comprar 180 mil por ano; antes o limite máximo era de 16 armas e 40 mil cartuchos. Por isso, o arsenal nas mãos da categoria passou de 350 mil armas em 2018 para mais de 1 milhão.
Dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação pelos institutos Igarapé e Sou da Paz, e divulgados pelo portal G1, revelam que o número de armas registradas em poder de caçadores, atiradores e colecionadores praticamente triplicou no Rio Grande do Sul entre 2017 e 2022. O estado contabiliza 148,5 mil armas, sendo a terceira região militar com mais itens em todo o Brasil.
O assalto, com grande repercussão no país, aconteceu em 29 de dezembro do ano passado. Bandidos, usando uniformes de policiais e distintivos falos da Polícia Civil estampados nos veículos utilizados para a ação, abordaram o carro-forte quando esse iria repor dinheiro em caixas eletrônicos.
O bando fugiu com três pessoas reféns, um dono de veículo na Ilha dos Marinheiros e dois donos de casas na região, levando mais de R$ 4 milhões dos caixas eletrônicos do supermercado, alvo do roubo.
Durante as buscas pela quadrilha, dois suspeitos foram presos e outros dois foram mortos em confronto. Posteriormente, um outro suspeito foi encontrado morto. O dinheiro roubado foi recuperado pela polícia.
“Primeiramente, o homem ganhou R$ 2 mil pela compra do fuzil e de uma arma curta. Após, foi aliciado para que comprasse outras armas curtas não tendo recebido nada para tal, tendo em vista que foi ameaçado de morte”, explica Abreu.
O indivíduo é morador de Getúlio Vargas, município de 16,1 mil habitantes a 340 km de Porto Alegre. As armas curtas foram compradas e entregues em 2020 e ao longo de 2021, segundo a polícia. E o fuzil, adquirido em agosto de 2021.
No entanto, a polícia suspeita que houve uma tentativa anterior de compra do mesmo armamento por outro indivíduo um ano antes.
As investigações apontaram outros envolvidos no assalto. Duas delas participaram do roubo e fugiram do local; e uma terceira que dirigia um carro utilizado na ação.
Ao todo, 24 pessoas foram indiciadas. Em maio, um dos suspeitos de chefiar o esquema foi preso dentro de uma churrasqueira em Canoas, na Região Metropolitana da capital gaúcha. A prisão mais recente ocorreu em agosto de 2022, um homem suspeito de participar do assalto foi preso.
Na organização do esquema, a polícia identificou pessoas responsáveis por encontrar os carros utilizados no crime, outros que buscaram coletes balísticos e demais itens utilizados, além dos cinco responsáveis pelas armas (o homem cooptado e os outros quatro presos).

NOVO CANGAÇO
E Guaíba não é uma ocorrência isolada: investigações policiais de quatro estados mostram a atuação de CACs no fornecimento de armas e munição para quadrilhas especializadas em roubos de grandes quantias.
Os ataques atingem agências bancárias, transportadoras de valores e assaltos com domínio de cidades de pequeno e médio portes, modalidade que está sendo chamada de “Novo Cangaço”.
O fuzil usado pelos criminosos no roubo à transportadora em Guaíba foi comprado pelo CAC por R$ 14 mil numa loja de armas com autorização pelo Exército para vender a arma, em agosto de 2021. O dinheiro pertencia a uma facção criminosa, ligada à quadrilha de assaltantes.
O fuzil foi pego por ele na loja e, no mesmo dia, foi repassado aos criminosos. Detectamos que ele também comprou outras três pistolas para a mesma quadrilha, com o registro de atirador diz o delegado João Paulo de Abreu, responsável pela investigação do crime.

DECRETO DE BOLSONARO BENEFICIOU O CRIME
O policial federal Roberto Uchôa, que estuda políticas de controle de armas e é pesquisador associado ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), acredita que a série de decretos do governo sobre armas beneficiou o crime organizado.
“Na festa das armas, o crime organizado é um dos convidados principais. Hoje, com a flexibilização das regras promovida pelo governo, existem diversas maneiras de armas compradas legalmente irem parar nas mãos de criminosos”, diz Uchôa.
As quadrilhas, explica o policial, “podem cooptar alguém sem antecedentes para se registrar como CAC e comprar armas, usar laranjas, usar brechas no controle para que seus próprios integrantes virem CACs”, diz. “E, por fim, ainda podem atacar transportadoras e lojas de armas”, afirma.
E ainda compram armas e munição mais baratas do que aquelas obtidas ilegalmente. “No mercado ilegal, um fuzil custa R$ 50 mil, ficou muito mais fácil buscar essa mesma arma três vezes mais barata no mercado interno, legal”, explica Uchôa.
Outro crime que teve a participação de um CAC aconteceu em Araçatuba, no interior de São Paulo, em agosto do ano passado e se destacou pela ousadia dos bandidos. Na ocasião, um grupo de 30 criminosos atacou três agências bancárias e fizeram moradores e motoristas reféns.
A investigação da Polícia Federal apontou que o atirador certificado pelo Exército Emerson de Oliveira Silva, além de abrigar parte da quadrilha antes do roubo, posteriormente vendeu um dos carros usados pelos criminosos durante o assalto.
Silva foi preso em flagrante em fevereiro deste ano, após agentes federais encontrarem, em dois imóveis de sua propriedade, um revólver calibre 38 e munição de calibres 5,56 e .50. Este último tipo, de uso proibido, que é capaz de perfurar a blindagem de um carro forte, foi empregado no assalto. Em agosto, o CAC foi condenado a cinco anos de prisão pela posse do armamento ilegal.
Na capital paulista há outro caso de CAC envolvido com quadrilhas de assaltos a bancos. Em dezembro de 2016, a Polícia Civil do estado deflagrou a Operação Galileia para desbaratar uma quadrilha que fornecia armas e munição para roubos de cargas, bancos e transportadoras.
Um dos principais alvos foi o colecionador e atirador Arnaldo Miranda dos Santos. Ele mantinha em sua casa uma fábrica clandestina de cartuchos, apesar de não ter autorização do Exército para vender munição.
Segundo ‘O Globo’, escutas feitas com autorização da Justiça, flagraram Santos pedindo a um de seus fornecedores, um policial militar lotado no centro de armamento e munição da corporação, munição “verde” e “palmeirense”.
Em depoimento à Justiça, o delegado Edson Carlos Tavares, responsável pela investigação, afirmou que a “munição de ponta verde, segundo a especificação da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), é aquela identificada como de furar blindagem”.
De acordo com o delegado, os cartuchos seriam usados “para ataque a carros fortes, a base de valores”. Em dezembro de 2020, Santos foi condenado a nove anos de prisão pelos crimes de associação criminosa e comércio ilegal de armas e munição.
De acordo com O Globo, a conexão entre CACs e quadrilhas especializadas em grandes roubos também foi identificada em dois estados do Nordeste. Em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, o colecionador André Filipe Cardoso Lemos Santiago foi preso em flagrante. Santiago negociava, na ocasião, uma bazuca com uma quadrilha que usaria o armamento para explodir um banco, em agosto de 2018.
Charles Francisco Dantas Júnior, comprador do armamento, também foi preso na ação. Ele já tinha uma condenação de sete anos de prisão pelo roubo de R$ 35 mil de um capitão da PM que havia acabado de sacar a quantia, dois anos antes.
Já em Natal, capital do Rio Grande do Norte, foi preso em flagrante o atirador Makson Felipe de Menezes Pereira, o “Playboy das Armas”. A prisão ocorreu em meio a uma investigação para combater uma quadrilha de roubo a bancos e carros-fortes, a Divisão Especializada em Investigação e Combate ao Crime Organizado (Deicor).
O CAC foi abordado por policiais em maio de 2021, no momento em que iria vender um fuzil 7,62 a Esterivar Ferreira de Lima, conhecido como Senhor das Armas, um dos maiores traficantes de armas do Nordeste.
O dispositivo estava dentro do carro blindado de Makson e foi apreendido. Segundo a investigação da Deicor, Lima é fornecedor de quadrilhas do “Novo Cangaço”.

Horadopovo.com.br

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