Marielle tinha potencial para ser deputada, senadora, presidente da República’, diz Benedita da Silva, 1ª vereadora do Rio negra e da favela

Publicado em 18 de março de 2018

benedita“Na Câmara [Municipal do Rio], antes da gente entrar, foram dez anos antes com a Jurema [Batista]. E dez anos antes da Jurema, a Benedita [da Silva]. A gente não pode esperar mais dez anos ou achar que eu estarei ali por dez anos”, afirmou Marielle Franco no último debate do qual participou, poucas horas antes de ser assassinada com quatro tiros, no dia 15, no Rio.
Naquela fala, Marielle lembrava que, antes dela, 5ª vereadora mais votada no Rio em 2016, pelo PSOL, apenas outras duas mulheres negras e vindas da favela haviam conseguido ocupar uma cadeira na Câmara da cidade ao longo dos últimos 35 anos.
A primeira delas, em 1982, foi a hoje deputada federal, ex-senadora, ex-governadora do Rio e ex-secretária especial da Assistência e Promoção Social do governo Lula, Benedita da Silva, de 75 anos, do PT. Benedita foi criada no morro Chapéu da Mangueira e trabalhou como camelô, doméstica e vendedora de doces e de pastel, entre outras coisas.
A segunda foi a professora de português criada no morro do Andaraí Jurema Batista, também do PT. Jurema elegeu-se vereadora três vezes e também foi deputada estadual.
“Se ainda é difícil para uma mulher negra, favelada, ocupar esses espaços, você não sabe como foi naquela época. Para começar, eu era a única dos 33 vereadores que não tinha carro oficial, porque diziam que o carro não podia subir a favela, e eu morava no Chapéu da Mangueira”, lembra.
“Depois, eu, casada, era objeto de certo tipo de violência sexual dos colegas, que ficavam apostando para ver quem sairia primeiro comigo. Você passa quatro anos tentando provar que é inteligente, que é capaz, que não é um objeto sexual.”
Para a deputada, mesmo com tantas dificuldades e preconceitos que mulheres negras enfrentam, não será preciso esperar mais uma década para que outra Marielle conquiste esse espaço político.
Marielle, segundo levantamento feito pela BBC Brasil, era uma das 32 vereadoras negras entre 811 eleitos para esse cargo nas capitais do Brasil em 2016.
“Estamos trabalhando para não ter isso, para não ficar contando nos dedos quantas negras e negros têm representatividade. Não quero fazer parte da estatística dessa forma”, diz por telefone à BBC Brasil. A deputada integra a comissão parlamentar que acompanha a investigação da morte de Marielle.
“Não podemos conviver com 3 parlamentares negras num universo de 500 deputados. Temos que ter nosso lugar de fala, não queremos que falem por nós. Queremos ter mais mulheres negras ocupando espaços em evidência.”
pesidenteeEm 2015, a deputada foi acusada pelo Ministério Público do Rio num processo de improbidade administrativa enquanto era secretária estadual de Assistência Social e Direitos Humanos no governo de Sérgio Cabral, por supostas fraudes em convênios entre a Fundação Darcy Ribeiro (FUNDAR) e ONGs com o Ministério da Justiça. O processo ainda não foi julgado e Benedita, que afirma ser inocente e ter todas as provas que comprovam isso, segue com seus bens bloqueados.

Ataque à negritude
Chorando algumas vezes, Benedita lembra que esteve no mesmo palanque que Marielle no Dia da Mulher, em 8 de março, e diz que “essa execução dela” tem um peso muito grande neste momento do país.
“Pensa, era uma mulher negra, da favela e lésbica, que lutava por direitos humanos. Há um esforço quase sobrenatural de quem é da favela, como diziam antigamente, para ser alguém na vida, para lutar pelo que acredita. É essa pessoa que executaram. Poderia ter sido eu, ou uma outra jovem idealista.”
Segundo a deputada, a caminhada política de Marielle estava apenas começando. “Ela estaria numa chapa do PSOL ao governo do Rio como vice, ela tinha potencial para alcançar ser deputada, senadora, presidente da República.”
Benedita vê semelhanças entre sua trajetória e a de Marielle, que conta ter conhecido ainda garota, quando fazia trabalhos sociais na favela da Maré, onde a vereadora cresceu.
“É essa história de uma mulher da favela, sem muita esperança, que num determinado momento consegue sair de lá para defender sua comunidade. Sabemos como ninguém defender nossa comunidade, como lidar com as injustiças, sabemos como funcionam essas ocupações militares lá, sabemos que não têm resultado positivo, que o que a gente precisa é de intervenção social, não do Exército. Por isso ela acompanhava a intervenção federal no Rio”, afirma, lembrando que Marielle era uma das relatoras da comissão parlamentar que acompanha a intervenção militar na cidade.
Para Benedita, o assassinato de Marielle, “além de uma violência contra a mulher, é uma violência contra a negritude”.
“É preciso considerar que estamos vivendo um ‘apartheid’ no Brasil, que não são os negros que se dividem, que são eles que nos separam. Se você achar que o problema é do negro, do favelado, do trabalhador, está perdido. O problema é da sociedade em que vivemos, dos governantes que não fazem políticas de inclusão porque isso incomoda a elite brasileira.”
E, segundo a deputada, Marielle , que denunciava problemas na política, na polícia, nas comunidades, incomodava muito.
“A Marielle era uma mulher negra que incomodava. Incomodava a elite, incomodava o mundo masculino, os políticos. Depois do que aconteceu, todo mundo começou a me ligar para falar para eu tomar cuidado. Nós não vamos nos calar, eles não vão nos amedrontar.”

‘Quem pensa que é?’
Ela lembra que quando foi vereadora, também sofreu ameaças, porque denunciava batidas policiais irregulares nas favelas, entre outras coisas. “Eu era uma das únicas moradoras do Chapéu da Mangueira a ter telefone. E me ligavam dizendo ‘Macaca, cuidado com o que você fala’, mandando eu me calar.”
Benedita conta que quando chegou pela primeira vez à Câmara dos Deputados, em 1986, ouvia de pessoas na rua e até de colegas frases como “quem você pensa que é para estar aqui?”.
“Até então ser vereadora já não era algo bem visto para uma negra, mas era suportável, digamos. Agora, virar deputada… Se você vai subindo na política e se aproxima do espaço que a elite política acha que pertence apenas a ela, as dificuldades vão aumentando. E não é uma questão só de ordem social, é uma questão muito forte de ordem racial”, diz.
“Mas isso não é discutido porque acham que o Brasil é um país miscigenado, etnicamente plural. E precisamos tratar disso, do que é o espaço de uma mulher negra. Antes achavam que era só na cozinha. Aí quando levamos anos para que essa mulher da cozinha, a trabalhadora doméstica, fosse reconhecida, vem uma reforma trabalhista do senhor de engenho [presidente Temer] e tenta colocar os trabalhadores de novo na senzala.”
MSN

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