Número de policiais mortos cresce 10% em 2020. Piauí é o estado com maior registro de assassinatos

Publicado em 24 de abril de 2021

O policial militar Francis Avante, de 34 anos, saiu em 17 de novembro de 2020 para resolver um problema mecânico em sua moto, no bairro da Penha, Zona Leste de São Paulo. Nunca mais voltou para casa. No caminho, interceptado por criminosos, foi assassinado com um tiro na nuca.
“Meu primo foi executado. Não deram nem chance de ele correr. Outros três motociclistas o fecharam. Ele se rendeu, levantou as mãos, pediu pelo amor de Deus. Quando fizeram a busca nele, acharam uma arma, descobriram que era policial e atiraram. Ceifaram a vida de um homem trabalhador, pai de família”, conta o primo, o também policial Felipe Tonhazzini.
Francis Avante é apenas um dos policiais assassinados no Brasil em 2020, um ano marcado pela alta nas mortes de agentes, mesmo em plena pandemia. Foram 198 vidas perdidas, um acréscimo de 10% em relação a 2019. O crescimento ocorre após três anos seguidos de queda nos óbitos de policiais.
O número de pessoas mortas pela polícia, por sua vez, teve ligeira queda (-3%), contrastando com a alta no número de agentes assassinados e de crimes violentos no geral. Ainda assim, é um número alarmante: 5.660 pessoas foram mortas por forças policiais no Brasil. A expressiva baixa de mortes no Rio de Janeiro teve impacto direto na redução nacional, mesmo com o crescimento registrado em 17 unidades da federação.
Os dados sobre vitimização e letalidade policial, inéditos, fazem parte de um levantamento exclusivo feito pelo G1 dentro do Monitor da Violência, uma parceria com o Núcleo de Estudos da Violência da USP e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Foram solicitados os casos de “confrontos com civis ou lesões não naturais com intencionalidade” envolvendo policiais na ativa. Os pedidos foram feitos para as secretarias da Segurança Pública dos 26 estados e do Distrito Federal por meio da Lei de Acesso à Informação e das assessorias de imprensa. Apenas Goiás se recusou, mais uma vez, a passar as informações.

Os dados revelam que:
• o Brasil teve 198 policiais assassinados em serviço e de folga no ano passado – um aumento de 10% em relação a 2019
• o Piauí foi o estado com a maior taxa de policiais mortos (1 a cada mil policiais)
• Acre, Paraná, Rio Grande do Sul e Tocantins foram os únicos estados que não registraram nem sequer uma morte de policial no ano passado
• ao menos 5.660 pessoas foram mortas por policiais em 2020 – uma ligeira queda de 3% em relação a 2019, quando foram registradas 5.829 vítimas (sem contar Goiás em ambos os anos)
• o Rio de Janeiro teve 575 mortes a menos de um ano para o outro, puxando a baixa no país
• ao todo, 17 estados registraram crescimento nas mortes por forças policiais
• o Amapá foi o estado com a maior taxa de letalidade policial em 2020: 12,8 por 100 mil habitantes

• Distrito Federal teve a menor taxa: 0,4 a cada 100 mil
Assim como o PM Avante, a sargento Tais Melloni foi atropelada por um carro roubado enquanto trabalhava em Mauá, na Grande São Paulo, em setembro de 2019. Ela era formada em psicologia e trabalhava havia 22 anos na corporação. Tinha um trabalho importante ligado à saúde mental dos policiais.
“Isso pode acontecer com qualquer um de nós, policiais. Todo dia a gente está expondo a nossa vida em defesa da vida de outros”, afirma Graziela Costa, amiga de Tais e capitã da Polícia Militar. “Ela foi uma profissional fantástica. Entrou como soldado, foi cabo, passou para a escola de sargento. Atuou em várias áreas.”
Os dados mostram que 140 dos 198 policias mortos estavam de folga, ou seja, mais de 70% do total.
Para Samira Bueno e Renato Sérgio de Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, e Bruno Paes Manso, do NEV-USP, o crescimento da vitimização policial precisa ser observado com cautela, em especial após os mais de 30 decretos e atos normativos presidenciais publicados desde o ano passado que flexibilizam o controle de armas no Brasil.
“Com o crescimento do número de armas em circulação e a alta no número de licenças expedidas pelos órgãos federais, a tendência é que conflitos banais sejam solucionados na bala. Assim, um policial que atende uma ocorrência de violência doméstica ou briga de trânsito está cada vez mais exposto ao risco de que os envolvidos estejam em posse de arma de fogo, o que pode resultar no crescimento de policiais mortos.”

Mortes pela polícia: queda em ano violento
Um número que chama a atenção no levantamento é o que diz respeito às pessoas mortas por policiais. Ele contrasta com o aumento da violência registrada em todo o país no ano passado. Dados do Monitor da Violência apontam que os assassinatos cresceram 5% de janeiro a dezembro.
Esses dados, publicados pelo G1 em fevereiro, incluem os chamados Crimes Violentos Letais Intencionais (CVLI), que são os homicídios dolosos (em que há intenção de matar), os latrocínios (roubos seguidos de morte) e as lesões corporais seguidas de morte. Não havia, porém, os casos de policiais mortos e o de pessoas mortas pela polícia, divulgados agora.
Houve 5.660 pessoas mortas pela polícia em 2020, ante 5.829 em 2019, uma queda de 3%.
De acordo com os especialistas do NEV-USP e do FBSP, as mortes por intervenção policial não são uma rotina em todo o país, mas o número elevado chama a atenção. Apenas três estados (São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro), por exemplo, somam mais da metade das mortes do Brasil.
Em Cidade Tiradentes, bairro no extremo leste da capital paulista, uma das pessoas que perderam a vida foi Henrique Oliveira, de 24 anos. Ele havia conseguido um emprego na pandemia e aproveitava a folga do trabalho com amigos em um domingo à tarde.
“Foi uma abordagem brutal [da polícia], chegaram atirando para cima. Os moleques correram porque a maioria não tem habilitação. Ele parou a moto, colocou as mãos pra cima. Ele se assustou, correu, tentou correr, levantou as mãos de novo e o policial deu dois tiros nas costas dele. Ele caiu no córrego, no esgoto”, conta um familiar de Henrique.
Testemunhas afirmam que Henrique não tinha arma. Segundo eles, isso ficou claro pois ele estava o tempo todo sem camisa. Moradores ajudaram a retirar Henrique do córrego e dizem que a ambulância demorou para socorrê-lo. Ele não sobreviveu.
Segundo dados da Secretaria de Segurança Pública de SP analisados pelo pesquisador Tauã Magalhães Vital, doutorando em economia na Universidade Federal de Juiz de Fora, Cidade Tiradentes é um dos bairros mais letais na capital quanto a mortes pela polícia.
Rio de Janeiro: com operações restritas, baixa recorde
O Rio de Janeiro teve a maior queda no número absoluto de mortes por intervenção policial. Houve 1.239 vítimas em 2020, ante 1.814 em 2019 – quase 600 a menos. A redução em termos percentuais também é uma das três mais altas do país: -32%.
Uma determinação do Supremo Tribunal Federal (STF) de suspender operações durante a pandemia da Covid-19 foi crucial para isso.
Os dados mostram que a queda no registro de vítimas coincide exatamente com a decisão do STF, no dia 5 de junho.
Naquele mês, houve uma redução de 78% em relação ao mesmo mês do ano anterior. As mortes por intervenção caíram de 153, em junho de 2019, para 34, em junho de 2020.
O patamar se manteve baixo até outubro, quando as mortes voltaram ao mesmo nível do ano anterior. Mas o número voltou a cair em novembro e dezembro.
“Há um discurso bastante generalizado entre as polícias de que as operações são inevitáveis para controle do crime. Enquanto isso, a gente observa que as operações caíram, as mortes em geral caíram e os indicadores criminais não subiram. A gente começa a perceber que a preservação da vida não se opõe ao controle do crime”, afirma o professor de sociologia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenador do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos (Geni), Daniel Hirata.
Apesar da queda expressiva, casos emblemáticos ficaram marcados no ano passado, como a morte do menino João Pedro, de 14 anos.
Ele foi morto durante uma operação no Complexo do Salgueiro. A família diz que os policiais entraram atirando “de maneira cruel” e não pararam mesmo com os gritos de que havia crianças na residência. Já a polícia fala que houve um confronto que resultou na troca de tiros que vitimaram o garoto.
Na liminar que restringiu as incursões policiais, Edson Fachin só autorizou operações em “hipóteses absolutamente excepcionais”, com justificativa ao Ministério Público por escrito.
Em 2021, a Defensoria Pública do RJ diz que “a exceção virou regra”, e o número de mortes tem voltado a subir.

Amapá: a polícia que mais mata
Já o Amapá teve, mais uma vez, a maior taxa de letalidade policial no país: 12,8 a cada 100 mil. Ao todo, 110 pessoas foram mortas pelas forças policiais. É a terceira vez nos últimos cinco anos que o estado encabeça a lista.
A Anistia Internacional, que acompanha a situação da segurança pública no Amapá desde o apagão em 2020, diz ter identificado um alto grau de brutalidade da polícia contra os que protestam contra a negligência do estado. Segundo Jurema Werneck, diretora-executiva da Anistia, os episódios de maior violência e de assassinatos por agentes do estado ocorrem principalmente nas favelas, nas periferias e nos quilombos.
“Essas mortes acontecem à luz do dia, na frente de outras pessoas, que são ameaçadas pelos policiais e que não encontram nas instituições mecanismos que as protejam”, afirma. “E o motivo mais imediato é uma polícia fora de controle e despreparada para cumprir a sua função de proteger a vida e o patrimônio das pessoas.”
Relatos recebidos pela Anistia foram compartilhados em audiência pública realizada pela Defensoria Pública do Amapá em dezembro de 2020, que teve a participação de ativistas e da sociedade civil organizada no estado.
“É uma população que tenta reagir desassistida. Existem ativistas que experimentaram, pessoalmente, a perseguição e a brutalidade denunciando isso, porque o Ministério Público, a Defensoria Pública e o próprio governo do estado não estão colocando à disposição da população os mecanismos necessários para que eles reivindiquem seus direitos e façam as denúncias de forma segura”, critica Jurema.
A PM do Amapá se defende e afirma que tem “trabalhado diariamente para garantir a segurança da população” e que os casos de letalidade só ocorrem “quando infratores atentam contra a vida de policiais ou terceiros”.
“Todos os criminosos que confrontaram as equipes da Polícia Militar estavam em posse de arma de fogo, tinham envolvimento com outras ocorrências graves e pertenciam a organizações criminosas que atuam no comércio ilegal de entorpecentes no estado”, diz a corporação.

Transparência
O levantamento do G1 durou mais de dois meses para ser concluído. Os dados foram solicitados via Lei de Acesso à Informação (sob a mesma metodologia utilizada nos anuários do Fórum Brasileiro de Segurança Pública) e também foram pedidos às assessorias de imprensa das secretarias da Segurança e das corporações, quando necessário.
O resultado: demora nas informações, dados desencontrados e números incompletos, assim como nos outros anos. Além disso, ainda há ausência de padronização. Foi preciso confirmar os números mais de uma vez para garantir a qualidade das informações.
Apenas um estado não informou nenhum dado sequer: Goiás. Já é a quinta vez que o governo se recusou a divulgar informações públicas para um levantamento nacional do Monitor da Violência (em quatro destas vezes, o pedido foi referente à letalidade e à vitimização policial).
Foto: Danny Calado/Rede Amazônica
G1

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