Professores analisam funk de MC Carol que contesta a história do Brasil

Publicado em 9 de julho de 2015

carolA cantora niteroiense MC Carol lançou na sexta-feira (3) uma música que tem chamado a atenção pela letra. Em vez de sexo, ostentação ou apologia à violência, temas recorrentes em funks, “Não foi Cabral” desafia a história do Brasil contada na maior parte dos livros escolares. O G1 conversou com a funkeira e entrevistou professores para analisarem os versos que falam do descobrimento do país, do genocídio de indígenas e cobra destaque para Dandara, a mulher de Zumbi de Palmares.
A música, que começa com um remix do Hino Nacional, contesta o descobrimento, em tom de voz agressivo. “Nada contra ti / Não me leve a mal / Quem descobriu o Brasil / Não foi Cabral / Pedro Álvares Cabral / Chegou 22 de abril / Depois colonizou / Chamando de Pau-Brasil / Ninguém trouxe família / Muito menos filho / Porque já sabia / Que ia matar vários índios”.
A cantora compôs a canção a partir de um convite do projeto Temas de Dança, que estuda a relação entre corpo, dança e história. “Nessa entrevista [ao projeto] eu comecei a falar sobre a minha adolescência na escola e falei que debatia muito com as professoras. Contei que a professora de história era com a qual eu mais debatia. Ela falava coisas que eu não aceitava e me colocava para fora da sala (…) Ela dizia que Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil. E eu falava: professora, Pedro Álvares Cabral não descobriu o Brasil porque já tinha 4 milhões de índios aqui. Como ele descobriu?”
O professor Oswaldo Munteal, da PUC-Rio, acredita que a perspectiva crítica da história apresentada em “Não foi Cabral” é válida e afirma que o funk merece ser respeitado como arte desenvolvida no Brasil. Ele afirma que a linguagem do ritmo é própria e que possíveis erros de linguagem são relativos.
“É um gênero contra o qual ainda há muito preconceito. E eu acho que este preconceito ainda precisa ser combatido. É música, e dentro deste âmbito, o certo e o errado são relativizados porque dependem da rima, da harmonia, do contraponto, da melodia e da própria composição da música”.

Visão ‘válida’, dizem professores
Para Munteal, a música pode atrair o interesse das pessoas para que partam para um estudo mais aprofundado da disciplina. Ele acredita que os brasileiros conhecem muito mal a sua própria trajetória.
“Acho que pode despertar um interesse crítico pela história. Porque as pessoas acham que já sabem história e que elas não precisam estudar. No vestibular, é a segunda pior nota, após física. Então é interessante despertar o interesse pelo raciocínio histórico. E é legal que o funk fale de história do jeito dele, agressivamente, com um jeito de cantar diferente. Eu acho que é uma maneira de expressão respeitável.”
Para o professor Flávio Morgado, do Colégio e Vestibular de A a Z, a visão da história a partir de grupos considerados marginais foi feita justamente a partir de um tipo de música que também é marginalizada. “Ela está se comunicando com o seu público, que muitas vezes também é marginalizado. A música tem uma certa ironia e humor, característicos do gênero. E mesmo com humor, ela tem uma coerência.”
José Nazareth Neto Alvernaz, professor do Colégio Sarah Dawsey, acha que MC Carol tem uma visão válida sobre o tema. “A letra é interessante porque alguns livros ainda insistem em reproduzir a chegada de Cabral e não problematizam a chegada dos colonizadores. A maioria dos professores afirma que é um equívoco. Há alguns livros que, inclusive, já trabalham com a perspectiva de chegada e não de descobrimento. Quando eles chegaram aqui havia de 4 a 6 milhões de indígenas. É uma visão eurocêntrica. Estamos acostumados a trabalhar a visão dos vencedores. A visão dos vencidos ainda está sendo difundida.”
Alvernaz cita como exemplo a viagem de Duarte Pacheco Pereira, que teria chegado ao litoral do Nordeste em 1498, mas não é citado nos livros didáticos. “Nós aprendemos a versão dos vencedores, mas os vencidos estão começando a ser ouvidos”, opina.

Morro do Preventório
A música também aborda as mortes de índios e de negros na construção do país. “Falando de sofrimento/ Dos tupis e guaranis / Lembrei o guerreiro/ Quilombo Zumbi”. Carol também questiona a versão oficial para a abolição da escravatura.
“A professora batia muito na tecla da história da Princesa Isabel, porque tem uma casa enorme no pé do Morro do Preventório, onde moro, que é a Casa da Princesa, que era a casa de bonecas, o lugar onde ela brincava. E o Morro do Preventório era um cemitério, onde enterravam os escravos. Aí eu comecei a debater com ela a figura da Princesa Isabel. Porque na época que ela assinou a Lei Áurea, aquilo já tinha que acontecer. Porque os ingleses já pressionavam pela libertação dos escravos, para eles terem dinheiro e comprar coisas. Então é como se pegassem uma branca, para fazer de conta que ela foi a libertadora dos negros. Mas não foi exatamente isso que aconteceu”, questiona a MC.
Para o professor Flávio Morgado, destaca-se na letra a menção ao nome de Dandara dos Palmares, mulher de Zumbi, que no século 17 lutou na resistência contra as forças dos colonizadores nos ataques contra o quilombo, que ficava na região onde atualmente é o estado de Alagoas. A guerreira, sobre a qual existem escassos registros, é um ícone dos movimentos negro e feminista.
“MC Carol não obedece a nenhum padrão estabelecido, ela é negra e vem de uma comunidade carente. Eu acho importante a menção porque traz aspectos importantes, como a figura da Dandara. Ela traz à tona importância dessa figura histórica. Ela revisita a história de um ponto de vista periférico”, diz Morgado.
José Nazareth explica o papel de Dandara na história do Quilombo dos Palmares, mas afirma que a importância da Princesa Isabel não pode ser deixada de lado na história do Brasil. “A Dandara teve uma participação importante na vida do Zumbi e na qual eles se revoltaram contra o primeiro líder do quilombo dos Palmares, o Ganga Zumba, porque ele fez um acordo com os holandeses com o qual não concordaram”.
Ele lembra que Zumbi e Dandara têm inegável importância na história da resistência negra do país, mas cita trabalhos do historiador José Murilo de Carvalho que informam que havia também escravidão em Palmares. “Palmares não era feito somente de negros. Também existiam índios e pessoas brancas empobrecidas que se refugiavam em para se livrar da exploração da aristocracia rural.”

Funk culto
Oswaldo Munteal afirma que a música que fala da história do Brasil pode ajudar a amenizar o preconceito contra o gênero. “O funk é uma manifestação do nosso povo. Pode ter vindo dos Estados Unidos, mas ganhou vida aqui e muita coisa também veio de lá, como o rock, que é amplamente aceito.”
Alvernaz concorda e ratifica a posição do funk como um gênero musical que pode abrir os olhos de novos estudantes para os encantos do estudo de história.
“A letra é simples e tem uma linguagem bem comum de ser entendida e que pode atingir que, muitas vezes, não se interessa por uma leitura mais acadêmica. A música pode ser um instrumento de aprendizagem para boa parte da sociedade.”
MC Carol comemora a boa repercussão da música na internet e afirma que foi capaz de mostrar uma nova face ao público. “Se antes as pessoas achavam que a MC Carol não poderia compor um funk culto, eu acho que elas já têm outra visão.”

Confira a letra da música:

Professora me desculpe
Mas agora vou falar
Esse ano na escola
As coisas vão mudar
Nada contra ti
Não me leve a mal
Quem descobriu o Brasil
Não foi Cabral
Pedro Álvares Cabral
Chegou 22 de abril
Depois colonizou
Chamando de Pau-Brasil
Ninguém trouxe família
Muito menos filho
Porque já sabia
Que ia matar vários índios
13 Caravelas
Trouxe muita morte
Um milhão de índio
Morreu de tuberculose
Falando de sofrimento
Dos tupis e guaranis
Lembrei do guerreiro
Quilombo Zumbi
Zumbi dos Palmares
Vitima de uma emboscada
Se não fosse a Dandara
Eu levava chicotada
G1

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