Um templo chamado cinema

Publicado em 11 de dezembro de 2016

Se a minha mente for realmente uma ilha de edição como creio, está certo o poeta baiano Wally Salomão, existe lá uma regra violada. Daquilo que se refere ao meu primeiro contato com o cinema, é fato que a desordem lógica de imagens ainda permanece intocável, não linear. Um estado bruto de sensações e cenas que se interpõem preenchendo a minha retina mental das mais singelas recordações.
É possível fechar os olhos e me ver lá no Cine São Francisco, na minha cidade, Patos, um dos maiores cinema que já vi (tomava quase todo o quarteirão da conhecida Rua do Prado). Bom destacar que a sua imponência definia bem o que era um Cinema, e não o conceito hoje que temos de salas de exibição.
O glamour dos filmes em nada era comparado, pelo menos para mim – menino entre cinco e seis anos, com a figura de farda, que só liberava a catraca branca quando se entregava o ingresso. Obviamente acompanhado por alguém maior, geralmente minha babá, fazia questão de cumprir esse ritual diante do homem da bilheteria.
Ultrapassada a fronteira, um cheiro de fumaça de cigarro, com balas de menta tipo sabor uva se misturavam, e ao me deparar com os cartazes dos novos filmes a magia começava. Eram os cartazes pintados que me despertavam ansiosamente para que aqueles filmes logo chegassem ao velho Cine. Eram pôsteres dos Trapalhões e suas inúmeras aventuras, de Dona Flor e seus Dois Maridos com uma Sonia Braga sensualmente pintada à mão. Muito anos depois viria a saber que as mãos talentosas daqueles muitos cartazes eram de um único artista, o gaúcho José Luiz Benício, conhecido por J.L. Benício, ou simplesmente Benício. Os cartazes de Benício eram uma marca do cinema nacional nos anos setenta e oitenta.
Estar lá aboletado naquela imensa sala era um misto de medo e de descoberta. Não fosse o fato de que amava ouvir aquelas músicas instrumentais antes mesmo do primeiro sinal de imagem na tela, fosse esse o Canal 100 ou o primeiro trailer. Lá estava eu embalado ao som de Glenn Miller, Cole Porter entre outros que conheceria de nome só no futuro. Naquele pequeno cockpit de madeira, onde sequer conseguia tocar o chão com os meus curtos pés, estava pronto para embarcar na viagem.
Era genial quando a luzes se apagavam e todos compartilhavam do sentimento de vulnerabilidade coletiva, quando éramos atacados por traz por aquela lanterna mágica, chave-mestra para as nossas emoções.
Da primeira cena que lembro ter visto num cinema, não houve legendas (pois não as lia), o filme não tinha cores (preto e branco), nem tão pouco um som conhecido. Os atores falavam uma língua estranha, e o que me recordo é que fiquei bastante agitado ao perceber que uma das personagens simplesmente desmaiara debaixo d’água, naquilo que hoje leria como imensa piscina olímpica. Um música cantada em italiano, e tudo aquilo me marcaria, como hoje ainda me marca ao rever o filme Dio Come Ti Amo, uma produção hispano-italiana com a ‘cantriz’ Gigliola Cinquetti.
Não era difícil desvendar o mistério. O que explicaria a minha presença naquele filme, sucesso nos anos 60 e em reprise, era o fato de que minha babá, não me levaria para a primeira sessão da tarde uma exibição infantil, justificado pelo fato de esperar o namorado na porta do cinema na segunda sessão um pouco mais tarde, e curtir aquele “água com açúcar” a italiana e pelo qual qual nutro um carinho especial até hoje.
Também é quase real a lembrança dos filmes de kung fu produzido em Hong Kong ou na China Continental. Como não sabíamos ler legendas, para a turma bastava escolher a cor do Kimono – preto ou branco – e daí vibrarmos para o show de “porradas” na tela entre mocinhos e vilões.
Vendo de longe acho que a discutível qualidade das interpretações desses filmes eram compensadas pelas belíssimas paisagens e pelas empolgantes acrobacias dos atores-atletas geralmente especialistas em wushu. Com planos abertos e com poucos cortes, as lutas eram decoradas imageticamente pela turminha que sem sucesso tentavam descrever a quem não viu, cada golpe do filme. Se os filmes trouxessem em seu título o tataravô de SHAOLIN, por exemplo, a presença era certa da jovem patota.
Naquele templo de fantasias era possível assistir aos filmes do Tarzan com Gordon Scott em sessões de Matinê, numa espécie de vale a pena ver de novo, pagando a metade do ingresso e ainda sim lotar o cinema, com direito aos tradicionais penetras de plantão.
Tudo no Cinema São Francisco possuía dimensões gigantescas, do ventilador no teto à imensa fila de cadeiras até, obviamente, a grande tela.
O ano de 1982 logo após a Copa da Espanha, a notícia de que iria residir em Campina Grande, me trouxe mais tristeza pelo fato de imaginar que um cinema como aquele só existia em Patos. E estava certo, pois com o tempo aprendi que cada Cinema possui uma força única de sala para sala. Minha despedida do Cine São Francisco não se deu de forma menor. O Filme ‘Um Fofoqueiro no Céu”, com Mazaroppi, produção de 1977, mas que reprisado lotava o velho Chico, marcou a minha despedida emocional daquele espaço. Viria a visitá-lo muitos anos à frente..mas não tínhamos mais a mesma cumplicidade. O garoto lúdico se transformara num estrangeiro a criticar impiedosamente aquele espaço de cidade do interior que só passava filmes atrasados.
E hoje diante dos seus escombros, de ossos à mostra, vejo o quanto fui cruel ao não reconhecer que ali eu nasci, ou melhor dizendo, que minha alma nasceu, e que pelas lentes do Cine São Francisco aprendi a enxergar o mundo através da película tão essencial para nossa sobrevivência à sensibilidade.

cinema

Cine São Francisco ontem e hoje
(*) Jornalista

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